2011/05/28

a semente dentro da maçã

Hoje trovejou, ouvi um sussurro de medo, no meio do som estridente dos trovões. Faíscas, atrás de faíscas e o sussurro constante a embalar-me naquela melodia agressiva e imprevisível. “Está a trovejar e eu estou sozinha”, ouvi alguém dizer. “Vizinhança estranha a minha”, pensei. Apesar do sussurro ter ganho a força de palavras, sentia-me adormecer. Mas não sonhava, pouco pensava e outro e outro trovão faiscavam com a mesma força estrondosa rompendo a penumbra do fim de dia chuvoso. Adormeci, por fim, envolto em pensamentos dispersos sobre o suave sussurro de medo que me rodeava.
De repente, descobri-me noutro sítio. Entre pinheiros e arbustos, havia uma roda de gente. Pareciam atordoados pela floresta, sempre calados, distraídos com olhares dispersos sobre as árvores, constantemente impacientes. Entreolhavam-se, baixavam o olhar em tristeza moribunda e a cada vez que os via, pareciam mais e mais entranhados num sofrimento estranho. Aproximava-me deles, lentamente. Não sabia ao certo porque estava ali, naquela floresta, não sabia quem eram aqueles nem qual era a sua desgraça. A cada passo que dava, tudo parecia mais forte, mais intenso e desesperante. Tropecei, a queda abalou toda a floresta, todos se comprazeram pelo barulho, as caras endureceram mas agora com sorrisos extremos, os olhares frenéticos daquele círculo eram agora de intimidade e alegria. O ruído da minha queda alegrou-os mas foi por pouco tempo, assim que me levantei voltaram os olhares macabros, já ninguém pulava nem sorria, como se nunca tivessem sido felizes. Ao continuar a caminhada em direcção a essa gente, descobri que não me era possível seguir sem ter de cair. Arbustos, ervas altas, covas, raízes e galhos faziam-me cair vez após vez. E, a cada vez, todos sorriam uns para os outros todos se compraziam daquele som estridente da minha queda. Mas nunca me olhavam, pareciam adorar o som da minha queda mas nunca me olhavam.
Quando consegui chegar até ao círculo, pude ver melhor aquelas caras. Estavam agora, quase secas, escuras, com uma expressão arrepiante de tristeza. Quando lhes perguntei que sítio era aquele e o que estava a acontecer, o sol parecia ter desaparecido, pude ver na cara deles o medo agonizante que a minha voz lhe provocou. Não pude dizer mais, esperei em silêncio por uma resposta em mim, algo que me pudesse fazer perceber o que tudo aquilo era. Ouvi alguém cair com o mesmo som aterrador que as minhas quedas tinham provocado antes mas desta vez, era medo o que eu podia ver, apenas medo e mais medo, uma aflição inconcebível de tão perturbadora. Estrondo após estrondo, finalmente chegou outra personagem, todos pareciam ter regressado ao estado em que eu os via antes de chegar ao círculo. Vagaroso, e sem levantar o olhar, um velho apoiado numa bengala caminhava em direcção a mim, trazia numa das mãos uma garrafa suja de pó que esvaziou na minha frente. “Água, é como água”, disse sem levantar o olhar. Enchi-me de medo então, era tão óbvio e o óbvio atormentava-me ali. Não compreendia nada, procurei então, à minha volta, no céu, nas árvores, no velho, na cara de cada um e não pude encontrar explicação, baixei o olhar entristecido e desesperado.
“Não procures o inegável, não procures, não procures, não procures… Foge, mas não te escondas, não – não ataques o medo, não o olhes, não olhes, não olhes, não olhes… O que veio, chegou, o que chegou está aqui e tem medo, porquê temer então a quem se quer esconder? Não vale a pena, não vale, não vale, não vale…”, disse o velho enquanto eu já nem me segurava de pé e caia num trovão sem faísca. Todos pareciam agora acordar de um pesadelo, as suas caras sem expressão alguma que não fosse confusão, entreolhavam-se até todas se voltarem para mim, caído em agonia. “Acorda, agora. Aqui não podes ignorar o óbvio, não podes, não podes, não podes… Em nenhum outro lugar acontece isso mas é aqui que todos sonhamos mas sofremos com as nossas próprias almas. Vai! Ninguém pertence a este sítio, ninguém, ninguém, ninguém…”.
Era noite e acordei, a janela aberta deixava entrar o vento frio. A chuva tinha cessado e não se ouviram mais trovões naquela madrugada.

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